O Cavalo da Estrela de Ouro na Testa
Autor:
Edigles Guedes
Uma
velha, sem boa letra,
Tinha
três filhos de Nhoé:
O
primeiro era Seu João;
O
segundo era José,
Homem
manso e suado;
Homem
brabo e aguado,
O
terceiro era Manoé.
O
velho tinha uma roça
Co’
arroz e feijão no pé.
Certo
dia, topou em sua casa
Com
um triste canapé,
Que
lhe dizia do bagaço
Dum
passeio de feio mormaço,
Em
sua roça e no sopé.
Certo
bicho cabeludo
Enfeitou
belo roçado.
Com
sua peraltice e dengo,
Comeu
arroz e feijão alado.
Botou
banca em plantação,
Sacudiu
terra em danação,
Aproveitou
o bom bocado.
O
velho Nhoé, malogrado,
Olhou
de viés, cuspiu sua ira.
E
disse, assim, à mulher:
—
Se pego com minha mira
De
bacamarte certeiro,
De
malvado maloqueiro
Arranco
do couro a tira!
Ele
falou aos botões,
Em
tom azedo e amarelo:
—
Onde estão nossos meninos
Para
me valer em duelo?
Um
cabra danado desses
Merece
uns erres sem esses,
Merece
prego e martelo!
Veio
José, avexado e liso,
Disse
ao pai que cumpria a sina.
O
bicho prenderia em barbas.
Co’
unhas e dentes, ensina
Com
quantos paus se faz canoa,
Ainda
que só coisinha à toa,
Que
dos olhos é menina!
O
pai Nhoé gargalhou às largas
Gárgulas
de mil risadas.
Sorriu,
soberbo e sádico,
Suas
coroas amareladas
Dos
dentes a seu bel prazer.
Grunhidos
a seu bel lazer,
Que
lhe valha em horas dadas.
O
José dormiu no ponto.
Desarmou
rede no rancho,
Espraiou
pé largo e sonso.
De
dia, viu seu pai todo ancho.
Fulo
de si estava o tonto.
Esta
é a lição que lhe conto:
Não
confiar em José , o mancho.
Novamente
o bicho imundo
Aprontou
das suas, na roça.
Comeu
de tudo direito.
Tinha
uma pulga que coça
Atrás
da orelha pra fazer,
Feito
criança em seu bom lazer,
O
malfeito, e isso com troça!
O
velho Nhoé, furibundo,
Disse:
— Um, como esse, merece
Pisa
de chibata macha.
E,
banhado, ele carece
De
chicote com urtiga.
De
apanhar, fió duma amiga,
Até
seu couro escurece!
Veio
Manoé, meio descansado,
Disse
ao pai que cumpria a lida.
O
bicho prenderia em calos.
Nhoé
veria a cara partida
Desse
ente tão vagabundo!
Para
os cafundós do mundo
Logo
decretaria sua ida.
O
pai espichou os dentes
Por
todas sete freguesias.
Sorriu
riso benfazejo.
Saltou
seus saltos de alegrias.
Gritou
de cantante feliz.
Lágrimas
caíram no nariz.
Brindou
tamanhas valentias.
Mas
Manoé defecou fora
Do
penico: fez feio o feito!
O
Manoé dormiu no ponto,
Tal
como outro irmão eleito.
Retesou
a rede, que espichou,
Ao
travesseiro se enganchou,
As
longas pernas no leito.
O
pai chegou, pegou o filho
Desamarrado;
e nas tranças
Da
Mulher do Sono, dormia.
Nhoé,
bruta cólera, lança
Um
pontapé bem certeiro.
Os
possuídos do treteiro
E
criminoso, eis que alcança!
Novamente
o bicho imundo
Faz
do arroz o seu bom capim,
Faz
do roçado o seu curral.
O
velho Nhoé grita: — Ai de mim!
Não
tem ninguém pra me valer!
Pinta
e borda até desvaler
Um
sujeito no meu jardim!
João,
mais caçula de todos,
Disse
em falar positivo:
—
Meu pai, eu que vou; mas antes,
Preciso
ser muito ativo.
Cinco
mil réis, eu careço,
Em
cativeiro de apreço,
Para
trazer o cativo.
Os
dois irmãos, mais caducos,
Logo
abriram a má boca
E
disseram: — O caboclo
Rouba,
e quer cavar a toca
E
enterrar todo o dinheiro.
Ou
que ninguém saiba o cheiro
De
cachaça na maloca.
O
pai disse sem embrulho:
—
Não tem nada, não! Segura
Em
tua mão, a moeda pedida.
Depositou,
sem agrura,
Sua
bênção em filho querido;
Embora
o peito partido
Quisesse
o fim à amargura.
João,
borralheiro, foi à venda
De
Seu Vicentão. Lá, comprou
Cachaça,
corda e alfinetes.
Os
alfinetes: espetou
Na
rede lerda de dormir.
Durante
a noite, viu carpir
O
sono à agulha despertou.
A
cada furada, um copo
De
cachaça, as velas do olho
Acendia
sem vil resmungo.
Assim,
com seu olho de molho,
Varou
ele a noite, desperto.
João,
menino tão esperto,
Fino,
fumegou o sobrolho!
Meia-noite
em ponto, apareceu
Rei
dos cavalos da estrela
De
ouro na testa, sem pejo.
João
rodou sua peça bela
De
corda sobre a cabeça.
Agora,
é aqui que começa
O
nó bem dado na moela.
Prendeu
o bicho em laço abraço.
A
cavalo, mui valente,
Arrastou
João em caminho
Afora;
a corda com dente
Não
se partia e mais ardia, a presa.
Cai
que não cai, com destreza,
João
aguenta firme e sente
A
mão dura na boa corda.
Até
que topa co’ um toco,
E
sustenta o prisioneiro.
Dando
muito coice e soco,
O
estranho bicho que rendeu
Suas
machezas; também, sandeu,
Falou
brutamontes ocos:
—
João, veja! Você me solta,
E
eu te dou os três cabelos
Do
meu topete valioso.
—
Feito corrente sem elos
É
assim a corda em pescoço.
Mergulho
em fundo do poço
Faz
um tal dizer apelos.
—
João, veja! Você me solta!
—
grita mais forte o cavalo.
—
Eu não posso, meus irmãos
Foram
lhe prender em valo,
E
todos fracassaram:
Dormiram
e deixaram
Cê
escapar em fundo ralo.
—
João, veja! Você me solta!
—
Você está com trama, não?
—
Se você me soltar, além
Dos
três cabelos na mão,
Deixo
o arrozal como era.
—
Eis que declarava à vera
Tão
mamute animalzão.
João
de coração molenga,
À
manteiga derretida,
Frouxa
o laço, alisa o bicho.
Desamarra
a corda, tida
E
havida por grilhão feroz.
Presentemente,
amor atroz
Sara
a profunda ferida.
O
cavalo cumpriu a fala.
Entregou
a João três cabelos.
Curou
as plantas do arrozal.
Ensinou
moço amarelo
A
manusear cada mecha,
Para
lhe valer em pecha,
Mesmo
em grande desmantelo.
O
cavalo foi-se embora.
João,
já de olheiras, varado
De
sono, pegou da rede
E
foi dormir sossegado.
Um
caboré piou má sorte.
Um
frio vento soprou forte.
O
cavalo e o sono alado
Navegaram
na cabeça
De
João-Boa-Morte, o solerte.
O
velho Nhoé chegou cedo.
Botou
desgosto, num flerte;
Pois
não viu bicho malfeitor,
Ou
sequer, ao menos, feitor
Em
situação mais inerte.
Porém,
ao parabenizar
Seu
filho, notou viçoso
Arroz
brotar nesse lugar.
Abismado
com o filho
Benfazejo,
ele perguntou:
—
Teve algum bicho, que sujou
Plantação
de arroz ou milho?
João
escandiu beiço largo,
E
disse co’ ar apropriado:
—
Não; nem bicho malfazejo
Nem
algum bicho aloprado
Visitou
as terras de papai.
E
se viesse, então, que foi: ai,
Ai,
ai!… Surra no leopardo!
O
velho aprumou um sorriso
Galhofeiro,
mas amigo.
Apertou
seu filho em peito
Aberto
e disse: — Inimigo
Algum
existe pra enfrentar
Meu
filho, sem ele assentar
Bolacha,
pão, vinho e trigo!
É
como eu digo: tal filho,
Tal
pai. Igual: cara e focinho.
Irmãos
invejavam, longe:
—
Olha com quem o mocinho
Está
abraçado? Com nosso
Pai.
O velho só tem osso
Para
cão vadio e daninho!
Aí
nisso, havia certa moça,
Princesa
eleita e bonita,
Que
se apresentava encima
Duma
pedra parasita.
Se
o cavalo lá subisse,
Cujo
dono não aluísse
A
pedra jamais catita,
E
conversasse com dona
Formosa,
era quem casava
Com
a moça, toda prosa.
João
sonhava, que sonhava,
Com
a flor de formosura.
Quer
a bela sem usura;
Pois
assim a desejava.
Seu
irmão, o José, se preparou:
Perfumou
dos pés às mãos;
Selou
cavalo escabreado;
Usou
seu camisolão.
Mirou,
no espelho, pérfida
Paixão
com língua bífida.
Cantou
de galo, o galão!
João,
humilde, disse e pediu:
—
José, empreste-me a garupa
De
seu alazão; vá! Cavalgue
Comigo
em seu jegue upa-upa!
—
Eu vou passar crua vergonha.
Eu,
borralheiro pamonha
Não
carrego, não! Pois, culpa
Tamanha
invade meu quengo.
Vá
cuidar de arrancar capim!
—
debochou, e se foi em montaria.
Arrodeou
pra trás do jardim,
O
avivado João que disse:
—
Valha-me rei sem tontice!
Mostra-me
a estrela de ouro em ti!
Dai-me
cavalo decente,
E
muito bom aprestamento,
Para
ir vexado à boa festa!
Encher-me
o contentamento!
De
imediato, surgiu apresto,
Bem
como cavalo lesto,
Em
grande deslumbramento.
João
passou a perna em cavalo
Expedito.
Os irmãos, deixou
Comendo
poeira bem rude.
Ele,
bravo, não pedinchou
Auxílio.
Subiu grã pedra,
Como
qualquer um que engendra
Maior
peripécia. Desinchou
O
pé na rocha. De aviso,
Deixou
seu lenço escarlate;
Pegou
o lenço da princesa,
Cuja
afeição pula e late.
Mais
rápido que uma bala,
Desce
em bramida cabala.
Cumpre
fado que dilate!
Os
cavalos dos irmãos
Não
sobem nem descem pedra
Alguma
com loa e princesa.
Dentro
de cada qual medra
O
ciúme e a tal tola inveja.
Caro
leitor, mire e veja:
Somos
cadernos sem letra.
João
chega à casa são e salvo.
O
pai, curioso, pergunta
Ao
seu filho José, lerdo:
—
Foi boa a festa? Ou besunta
O
teu cavalo em festa à toa?
—
Os cavalos são tais, lagoa
Sem
sapos, se mal pergunta.
Não
querem pedra subir.
Mas
há um rapaz, sem tirar
Nem
por, igualzinho ao João,
Que
passou que nem pairar
De
beija-flor — voo rasante!
—João-Boa-Morte,
bem prestante,
Daqui
não saiu a bailar!
—
Disse o pai Nhoé, carrancudo.
“Que
desfeita foi essa!” pensou
O
velho. “João é escorreito,
Cabra
de fibra, como eu sou.
Não
é treteiro, chaleiro,
Seringueiro,
maloqueiro.”
Assim
por sim, o velho ousou.
Noutro
dia, nova peitica.
—
Manoé, do cavalo empreste
A
garupa, dê empurrão
Ao
jovem irmão que preste.
Favor,
quem misericórdia
Usa
com os seus nesse dia,
Ganha
virtude do leste.
—
João pare já com sua embirra.
Pois
Manoé, cá, não engole
Sapo
por avião gigante.
Que
sua cachola rebole,
Use
o tutano do quengo.
Deixa
isso! Deixa de dengo!
Vá
arrancar o catolé!
Logo
os irmãos se foram.
João
deu uma volta no oitão.
Bradou
em alta voz sonora:
—
Rei dos cavalos! Visão
Eu
quero doutro cavalo
Veloz
e apresto vassalo.
Num
abalo, viu alazão
E
apresto de ouro bastante
Raro,
de tão caro que era!
Passou
perna no cavalo;
Pulou
porteira, víscera
De
casa, úlcera de valo;
Ultrapassou
o puro calo
Dos
dois irmãos, como cera
Em
pata sagaz de abelha.
Desabalada
carreira,
Subiu
o mondrongo de pedra,
Visitou
mulher faceira,
Conhecida
por princesa.
Encantou-se
por beleza.
Largou
casto anel sem beira
Nem
eira; pegou caro anel
Da
princesa; desceu voando.
Num
pique, foi ao casebre,
Que
se chamava de pando
Lar
doce, embora sem sabor
De
mel. Tinha bojudo amor
Do
velho pai e seu comando.
Nhoé
pergunta ao Seu Manoé:
—
Foi boa a pândega? Cachaça,
Petisco
e broa faltaram?
—
Nada que não faltou. Taça
De
vinho foi bem servido.
Porém,
os cavalos idos
Não
serviram, não! Sem raça.
Cruzou
pela gente um moço,
Lavado
e cuspido a João.
—
Pare de levantar falso;
Seu
irmão não tem ilusão!
Por
pouco, o pai Nhoé exclamou:
—
Você é tratante. Embramou:
—
Velhaco é ocê, rapagão!
Nessoutro
dia, José falou
Pro
vidro: — Espelho, espelho meu!
Sou
mais gaio do que Narciso.
A
princesa, não sou sandeu,
Está
no papo. Só o monte
Escalar,
para que conte
A
história; não sou camafeu!
Montou
no cavalo e foi-se.
Assim
que os irmãos saíram,
João
foi à esquina do outão.
Apelou
pro rei. Caíram,
Duma
só vez, o cavalo
Ligeiro
e apresto dédalo.
As
estrelas sorriram.
João,
pois, trepou na grã pedra.
Apeou,
visitou a princesa,
Entregou-lhe
os seus sapatos.
A
trépida flor lindeza
Logo
lhe entregou sapatos
De
cristal, no mais reto ato
De
amor nessas redondezas.
João
venceu a pedra gigante;
Com
seu cavalo baio, voltou
Para
sua casa, sonhoso.
Pai
Nhoé, zeloso, perguntou:
—
Em que pé de estribo no par
Vocês
se meteram? Falar
Da
festa… Ah! nenhum assuntou?
—
Não tem assunto, meu velho.
Um
jovem galante passou
A
todo galope e vento.
Até
da gente ele caçoou.
Parecia,
tal cavaleiro,
Com
o nosso borralheiro,
Quando
a luz da lua veio e atroou.
—
Vocês estão com inveja
Do
seu espirituoso irmão.
João
não arredou o pé daqui.
Carece
de descontão
Qualquer
uma cabreirice.
O
resto é sua meninice,
Carranquice
de montão!
Daí,
cada soldado catou
O
pé que caberia no par
De
sapatos da princesa.
Depois
de andar, foram topar
Com
cabana sem préstimo.
Testaram
os agílimos
Pés
em botas a xaropar.
Mas
os sapatos cabiam
Somente
nos pés de João.
Que
assomou filho lindo:
Co’
anel da moça na mão,
Lenço
da moça no bolso,
Roupa
chique sem embolso.
Levaram-no
prum Reinão.
Ele
casou com princesa.
Diz
lenda que desacato
Infeliz,
sofreu o bom João.
Glosa
esta depois desato.
Ladino
viveu, não minto.
Entrou
por perna de pinto,
Saiu
pela perna de pato.
Salgueiro,
17/1/2016.
Comentários
Postar um comentário