A Outra Mulher que Enganou o Diabo

Autor: Edigles Guedes

Neste mundo tão caduco,
Não existe Mané esperto,
Sem outro mais que sabido.
Portanto, agora, alerto:
Ai, do esperto sem sabido!
Ai, sabido sem acerto!

Noutras distantes freguesias,
Havia um homem muito pobre,
Em seus bolsos não cabiam
Moedas de prata ou cobre.
Subsistia numa penúria
De se estabacar tresdobre.

Em certa noite enluarada,
Visitou encruzilhada.
Enterrou pote bojudo,
Com sangue e uma cusparada,
Com contrato que detinha
Linhas tortas assinadas.

E bradou todos os gritos:
— Se o Diabo entregar riquezas,
Muito dinheiro: cédulas
— As maiores das redondezas;
Moedas gordas e redondas;
E propriedades; destrezas.

Darei a meu beneplácito
A minha alma destemida.
Mas, por mais que clamasse,
Nenhuma voz foi ouvida.
Não sentiu calafrio em gula,
Nem lhe tocou pele álgida.

O homem, então, já meia-noite,
Voltou pra casa de taipa.
Arrependeu-se em demasia.
Um canhim meteu-lhe a ripa,
Sem nó, nem dó, nem piedade,
Até botar fora a tripa.

Aquele pobre-coitado
Chegou à sua casa, estropiado.
Com os olhos arredondados,
Com seu fôlego abreviado,
Com hematomas inchados,
Com seu semblante agoniado.

Noutro dia, o Nem-sei-que-diga
Assomou numa visagem.
Prometeu que, por uns três dias,
Ele é dono da paisagem,
Que sua vista tanto alcança,
E teria moeda em bagagem

Bastante para comprar
Uma vida de abastança.
Um breve espaço de tempo,
E sumiu sua duvidança.
Refez pérfido contrato
Sem justiça na balança.

Pé de Gancho logo disse:
— Depois de três dias requeiro
Vossa bendita alma negra.
Sem louvações de violeiro,
Levo sua alma ao inferno,
Filho dum cambalacheiro.

O homem, cujo nome era João,
Respondeu sem mais questão:
— Pode carregar minha alma;
Dela arrenego, tristão.
No entanto, eu quero dinheiro
Mais que todos os cristãos.

O Diabo, súbito, cumpriu
O contrato, interesseiro.
Multiplicou seus terrenos;
Aumentou pastos cacheiros.
Dilatou cédulas de ouro.
Tudo era arte do treitero.

Segundo dia, cabungeiro
Estava o valente João;
Pois o seu prazo apertava.
Tremelicavam suas mãos. 
Pervagava cabisbaixo,
Sem rumo, sem direção.

A sua mulher vendo o enfado,
Depressa lhe investigava.
Queria saber o motivo
Pelo qual se castigava
Com essa grande aflição.
Que remédio, pois, curava

Sua estrondosa indignação?
Não enxergando outro jeito,
A mulher lhe perguntou:
— Meu bem, que dores no peito
Tanto lhe oprime ou redime?
Parece até escravo no eito.

— Na noite passada apertei
A mão dum feioso sujeito.
Que me prometeu seus mundos
E fundos, como tem feito.
Vendi a minha alma; e, agora,
Da imunda morte sou eleito.

— Meu marido, não se afobe.
Aqui tudo tem um jeito.
O troncho logo se emenda;
O torto vive direito;
O sujo com mal lavado
Vivem, amigos do peito.

O capeta vá mandar
No inferno com seus malinos.
Cá, já tem quem mande.
Carecemos de pepinos,
Frutas, verduras e carnes,
Pra encher pança dos meninos.

Esse um que vá, lá, caçar
O que fazer; aqui temos
Muito que se preocupar
Com que bebemos, comemos.
Ah! pode deixar comigo,
Tenho-lhe barco sem remos.

A mulher comprou um barril
Enorme de piche preto.
E tomou banho do jeito
Que nasceu, com retrospeto.
E pintou a boca de batom,
Feito decerto cateto

Sem triângulo na geometria.
Daí sentou no meio da sala,
Pronta para dar o golpe
Em qualquer alça sem mala.
A mulher fez-se tão feia,
Que o sujeito perdia a fala.

Enfim, deu-se o terceiro dia,
E, na meia-noite, brilhando
Por toda rude pradaria,
Surgiu o cão-miúdo, o nefando.
Boca cheia de ouro, chapéu
Branco, a gravata alumiando.

Estava bem engomado;
Calça e camisa, passada
Por dentro dum cinto magro.
A cabeça estava atada
Por um lenço alvo, esfuziante.
Incerta perna arqueada

Pro norte, a outra pro sul.
E por onde ele passava,
Deixava impregnado no ar
Um cheiro, que aumentava.
Certo perfume de enxofre,
Do sovaco ele exalava.

— Ô Fulano, tudo bom?
— Tudo; desapeie, que vamos
Conversar um bocadinho.
— Co’ isso tudo que ganhamos,
Você estava satisfeito?
Nós, contigo, não falhamos.

E o negócio que fizemos,
Ainda está de pé ou quedou?
— Eu sou homem de desmanchar?
Honro a palavra que lhe dou.
Antes, venha ver a casa
E um bicho que não se arredou.

Depois de vasculhar casa
Nobre, tão vasta e estimada;
Topou com abilolado
Bicho, sem qualquer camada;
Ele todo arreganhado,
Coberto de assanhada

Cabeleira monstra e preta.
Semelhava a bom morcego
Sem pouso em caibro ou poleiro.
— Que bicho é esse? Que trêfego
Animal tem uma boca
Assim ao contrário, nego,

Do resto de nossa espécie?
Eis que ele fez sinal da cruz,
Pois desenhou horripilenta
Boca na vertical, daí, truz!
Sumiu num estrondoroso
Pipoco, tal qual arcabuz.

Num estampido, que surdo
Deixa um vivente atordoado,
Eis que acaba o cavaleiro
Das trevas indo, logrado,
De volta para sua casa,
Sem a alma humana de gado.

E cá acabou o que era doce,
Diz a lenda, quem comeu
Isto se arregalou a rodo.
Grato eu sou a você, que leu.
Leve o folheto distinto.
Entrou por perna de pinto,
Saiu por perna de sandeu. 


Salgueiro, 19/1/2016.

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