A Diferença Entre o Pobre e o Rico - Volume 1


Autor: Edigles Guedes

Quão grande é a diferença:
O pobre com sua crença
Nada tem de rico valor.
Já o rico sem detença,
Vale-se de sua herança,
Tem cá dinheiro sem pudor!

O rico, quando ele nasce,
O pai solta o paletó.
Acende um longo charuto.
Cai feliz como um potó.
A mãe embala e profere:
— Vai dar nó no mocotó;

Vai dar nó no pingo d’ água.
Ele com pobre abolacha.
Dá uma pisa de monstro,
Há pouco, desentarraxa
Tampa de pote sem graça.  
Ele sobe em quem se agacha.

O pobre, quando ele nasce,
Abre o berreiro e dá dó.
O bebê chora o dia inteiro
Tanto e tanto que dá nó.
A freguesia logo diz:
— Eta, nasceu um bocó!

Maldito é esse nascimento:
As lágrimas correm muitas.
Alagam doze cidades,
Uns baldes em sua desdita!
Caí logo de braços dados
Co’ a doce e renhida luita.

O rico, quando se apruma,
Empina o nariz ferino.
Sequer pisa o pé no chão.
O terno, sempre grã-fino,
Empolga-se com altivez.
Outro qualquer é cretino,

Pobre roto, sem serventia.
Só ele é quem tem muita valia.
Só dá valor ao seu umbigo.
Tem rei na barriga sombria. 
Vale-se de seus amigos.
Faz moedas com velhacaria.

O pobre, quando desanda,
Chama toda sua atenção.
Leva coleira em pescoço;
Um matulão na sua mão;
A desgraça companheira
Faz logo perseguição.

E, anda descalço, com pés
A escorregar pelo chão.
E, com cada passo, o espinho
Crava-lhe no seu pezão.
Arranca da crua garganta
A dor de sua ingratidão.

O rico vai ao banheiro.
Papel que usa é perfumado;
A água da pia é cristalina;
O banho de sais é aguado;
A sua bacia sanitária
É de puro ouro, de agrado;

O assoalho é de cerâmica;
A parede é de diamante.
A bunda é feito esmeralda;
O tolete cai cantante,
Quando sai do seu fiofó,
Em vitória acachapante.

O pobre vai ao banheiro.
Não sabe tirar as calças,
Não sabe assentar no trono.
Na bacia faz pura arruaça.
Mela tudo e não disfarça;
É pior caçador sem caça.

Lambança toma de conta,
É bosta pra todo lado.
Fede a cru, pai de chiqueiro.
Pior do que pinto pelado
Sem encontrar seu poleiro:
Espalha estrume de gado.

O rico faz, quando come,
É muito silêncio amuado.
Respeita o prato quadrado,
Que devora sem ser suado
O nosso pão de cada dia.
O garfo é muito acentuado.  

Estapafúrdia é a mordomia.
A faca, afiada e calada,
Enfia dentes amolados
Na carne de boi grelhada,
Num nédio peito de peru,
Sobremesa congelada.

O pobre faz, quando come,
Barulho que só desgraça.
Os dentes desempenam
O osso; a carne, só amassa.
Por isso, engole o caroço;
E cheira a carne de graça.

A comida é de semanas,
Que era para ser servida.
Come pão dormido e duro;
Farinha podre e decaída
Do forno do frio desprezo,
Dá nó em boca velha e caída.

O rico, depois de comer,
Jamais lambe os próprios beiços;
Pois, para isso há guardanapos
Lindos, desenfadadiços.
Se limpa com cautela e usa
Lenços desenfastiadiços.

A comida é uma beleza:
Tem escargot bem fresquinho,
Tem filé mignon tão caro,
Tem lagosta, arrumadinho.
Tudo macio, pra dengoso
Nenhum quebrar seu dentinho.

O pobre, depois de comer,
Depressa que se lambuza.
Passa a colher na panela.
Da graxa e óleo, abusa.
À colher sangue em médico,
O colesterol acusa.

Sempre, que pode, detona
A graxa, e deixa a mistura.
Pois não sabe se verá
Outro pedaço de pura
Carne mais que suculenta.
Vivo é quem pouco perdura.

O rico, quando ele dorme,
Nenhum pio sequer se escuta.
Não há ronco esplendoroso,
Pois rico é cobra batuta,
Que não trabalha no duro,
Esta é a sua doce conduta.

O ronco é para quem labuta,
De janeiro com janeiro;
Em renhida luta bruta,
Durante o ano por inteiro;
Como quem escava o chão
Mas desencontra o dinheiro.

O pobre, quando ele dorme,
Ronca sem desfaçatez.
Quase põe a casa abaixo,
Com o estrondo que ele fez.
Os vizinhos, incomoda.  
— Que tamanha insensatez!

Esse ronco é demasiado
Desmedido; arcabuzada.
O ronco é desajuizado,
Feio feito a bacafuzada.
Angu sem caroço, e tudo
Acaba em sururuzada.

O rico, quando namora:
Primeiro, olha o bom produto,
Aperta pra ver defeito;
Segundo, fuma um charuto,
Analisa seu pedigree;
Terceiro, fica de luto,

Banzeiro, que calculando
O prejuízo do namoro
Ao casamento ligeiro,
Toma a decisão, canoro,
Pondo os pingos nas suas letras,
Sem pressa de carnívoro.

O pobre, quando namora,
O beiço logo ajunta.
Dá um beijo desmantelado.
E o queixo desconjunta
Do jovem enamorado.
Resta sequer pergunta.

E abraça a rainha Beleza
Nua, debaixo do sovaco.
Fedor de fossa e latrina;
Fétido, que nem tabaco.
Zé Ninguém corre da esquina,
Cheira a tapa de macaco.

O rico, quando se assenta,
Cruza as pernas num desplante.
O pé que sobra balança,
Em sinal de ser cantante;
É intolerante com pobre,
Desprezado e viandante.

Tranca-se todo em cadeira,
Mais abotoado que o cravo,
Não dá mole na caneta.
Nenhum rico centavo
Desperdiça, economiza
No seu derradeiro agravo.

O pobre, quando se assenta,
Abre as pernas em demasia.
Que é pra ventilar os ovos.
Passar por entre a freguesia,
Ares de sua flatulência.
Ah! Quanta e tanta teimosia!

Co’ as pernas arreganhadas,
Se brincar, bomba a trovoada.
Os peidos são mais de doze,
Fazendo gigante zoada.
Som dos fogos de artifícios,
Ribombam vozes coalhadas.

O rico, quando ele janta,
Bebe suco de cítricos,
Leite e sua água mineral.
Empregados, paparicos,
Fazem festa no curral.
Patrão não deixa de bicos,

Enquanto o prato final
Não sai do fogão sem palha.
Aí, devora seus petiscos,
Como em colossal fornalha.
Sem piscar de suas pálpebras,
Come com grande bugalha.

O pobre, quando ele janta,
Bebe café preto e mijo,
Come farinha e ovo frito,
Defeca bolote rijo.
Na bacia sanitária,
As dores sem regozijo.

O único talher que vive
Em sua mesa é a colher de pau,
Que serve para remexer
Sopa de pedra com mingau
De seixo, com pitadelas
De capim e a quatro o escambau!

O rico, quando se deita,
Estira os braços e as pernas.
Espreguiça-se em sua cama
De espumas mansas, fraternas.
No travesseiro de penas
Deita suas ideias supernas.

Cobre o lençol de linho
Ao homem rico com mazorro.
Sonha em dar nos empregados
Um desproporcional esporro;
Sonha com a ditosa vida;
Sonha co’ avultado aforro.

O pobre, quando se deita,
Rede prontamente estala.
Faz papoco nas suas cordas,
O armador logo badala.
Tanto estica a podre corda,
Que o chão do pobre se entala.

Deita-se em cama de palha,
A mola sacode a gente.
Os pés da cama espalham
Com o peso descontente.
Beija sua testa no chão,
Como bala à mão-tenente.

O rico, quando ele inventa,
Ri desgostoso entre dentes.
Todos são bastantes alvos;
Todos são serras decentes;
Alicates e torqueses;
Facas afiadas, potentes.

A risada é sobranceira.
Dentes, certos e cerrados,
Refulgem à duma lua,
Cheia de morcegos alados.
Desabotoa logo o riso.
Os botões lhe caem calados.

O pobre, quando ele inventa,
Ri às bandeiras despregadas.
De tanto ri, as dentaduras
Quedam, ao chão, tão largadas.
Ou viajam em asas de ares,
Sobremodo, xambregadas.

Risada é desconcertada.
Se havia dentes na boca,
Quedam todos sentados
Na bacia sanitária, oca.
Os vizinhos declaram:
— Que risada de boboca!

O rico, quando ele urina,
A bilola bem certeira
Mira na aguinha parada,
Da bacia agasalhadeira.
O seu xixi xexelento
Cai pouco, dessa maneira.

Quando desce para o vaso,
A urina não faz barulho.
Sai mansinho em mansuetude,
Nela não há sequer embrulho.
Os pingos caindo, eclodem
Belas bolhas sem engulho.

O pobre, quando ele mija,
O esguicho faz grande zoada,
Que acorda qualquer badalo.
Os pingos cantam sua toada,
Pingam pra todos os lados.
Sobe catinga e caçoada.

Mijo é como de jumento:
Fede mais que cão sarnento,
Num inverno de descrença.
Mijar é pulcro tormento;
Na urina queda o lamento.
Sofrimento é sua sentença.

O rico, quando se embriaga,
Não faz feio no seu terreiro.
Fica com a cara lisa,
Sorriso que sobranceiro.
Brilha a tez mais que catarro
Na parede, domingueiro.

Com uísque, na forte mão,
Zomba de seu Zé povinho.
Diz que o povo não trabalha,
Vive em feriado daninho.
Quando se cansa, ele bebe
Água e coco geladinho.

O pobre, quando se embriaga,
Vê meio torto o mundo inteiro.
Caminha já capengando,
Ora lento, ora ligeiro.
É um perfume fedorento.
Exala de bode o cheiro.

Não acerta os breves ponteiros
Do relógio: a bacia chama
De meu bem; mira o vômito,
Alveja a gostosa cama
Benfazeja; dorme que nem
Porco em saborosa lama.

O rico, quando trabalha,
Não lhe cai o suor de seu rosto.
Ele não faz um pio esforço.
Trabalha com muito gosto,
Em seu escritório com manga
De camisa, bem-composto.

A caneta ri sua tinta.
Escreve tão carinhoso.
A escravidão, no toutiço,
Caída, do pobre sonhoso.
E senão trabalha no eito,
É preguiçoso, manhoso.

O pobre, quando trabalha,
Demasiada presepada
Arranja num piscar de olhos.
A enxada é muito pesada,
A pá salta da mão, esperneia,
Com cara feia, cara ousada.

A estrovenga voa e balança,
Mas o capim cresce e avança.
E o trabalho se avoluma.
Esmorece sem tardança
O vigor do cabra pobre.
Em tudo brinca a lambança.

O rico enterra o sofrer
Na cova dos pais piedosos.
Passeia na sua limusine,
Acena co’ olhos ditosos.
Os sapatos mais polidos
Que tais chicletes viscosos.

Todos os ventos sopram
A seu favor; vela dança
E balança, e ufana, e se vai.
Na tempestade, não cansa;
Acalma os ânimos brutos
Com mui dinheiro e abastança.

O pobre sofre mais do que
Um sovaco de aleijado.
É filho sem pai, marido
Sem esposa: um enjeitado
Por todos arrenegado.
Nasce pastor sem cajado.

O pobre, na sua sofrência,
Desconhece o abecedário
Duma boa e bagre abastança.
O ladrão rouba seu pão diário,
Dá-lhe um soco pra deixar
De ser Zé da véstia, otário.

Mas, quando um cabra morre,
Tanto pobre quanto rico,
Compartilha a mesma sorte:
Buraco sem mexerico,
Cova rasa ou profunda.
Torna-se estrume e penico.

— F I M —


Salgueiro, 25/1/2016.

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